domingo, abril 04, 2010

Um café sem Letras


Há quase uma dor. As velhas palavras num jornal escrito a chumbo saltam de um fulgor que já não se usa. Fazem velhas manchas num escrito que é de novidades velho no tempo. Soltam-se os nomes assinados no topo das peças vertidas a retalho, como que percebidas pelos dedos dos autores. Escritores, que, ávidos, teclaram como feiticeiros a sorver a vida de pessoas reais, personagens de uma vida que se tornou estória de um diário.

Há quase uma mágoa. Perceber que o som se faz silêncio quando não se ouvem os passos e as piadas de um velho que para o chumbo e para a vida sempre foi jovem. O branco das paredes pintadas a secretárias - maquinas de escrever, computadores, impressoras, telefones frenéticos e apontamentos sonoros - fez-se gélido e congelou o cravo que no tempo era a liberdade. Parece que o café não é mais o catalisador de uma manhã ainda a acordar e que o whisky se desfez numa garrafa vazia. Uma cadeira azul vazia é como o céu sem nuvens, perfeito e sem as manchas da vida, pecados e nódoas que o destino sorve como um glutão endeusado em costumes e pessoas.

Há um esgar de saudade que se perde num esvoaçar solitário e incauto. Uma mesa em que pairaram as estórias de vidas e passagens de luta não mais o será sem o escrivão genial. A caneta não tinge o papel sem o jeito do artista que em música fazia as palavras das histórias de ninguém. No quadro das memórias e dos recibos de momentos, cai a penumbra das dádivas do tempo. Uma fotografia roubada é como a imagem de uma alma num delicioso segundo sem preço. Um riso de anedota, um balbuciar de atraso à hora da escrita é como uma pecado fatal que, de irreverente e sem tempo, se cristalizou nos confins da mente do mestre.

Queria dizer-te que a cadeira está fria, sem calor possível que reconheça num espaço traçado por múltiplos sapatos. Queria explicar-te que o teclado não mais deixou escrever as palavras que vertias como um pianista de jazz que sobremaneira morre a cada frase que toca e flui em músicas que se soltam. Melodias juntas que contam momentos pescados do anzol surpresa que surgem de uma luz que não se percebe, mas se deixa entrar no livro dos mestres.

A máquina de escrever morreu há uma década. Há duas ficou sem tinta e ninguém mais a tocou. Queria mostrar-te o que todos os dias descubro e perguntar-te o que nem todos os dias sei. Queria a tua irritação, os teus inimagináveis horizontes humanos e a conservadora abertura de ideais e ideias modernas. Queria saber todos os dias o que é ser repórter, sem me achar a questionar a razão pela qual a moeda faz de um contador de histórias um insignificante e um solitário caminhante da noite.

Um país que não se lê e não sorve o tempo é um país que não vive nas palavras do âmago dos seus dias e na borra do café do manhã seguinte.

0 comentários: